terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Quati

"Encontrei Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos conversando quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com o seu tranqüilo cachorro puxado pela correia. Só que não era cachorro. A atitude toda era de cachorro, e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo e duro - poderia, na verdade, ser apenas uma variação individual da raça. Ivan levantou a hipótese de quati, mas achei o bicho muito cachorro demais para ser quati, ou seria o quati mais resignado e enganado que jamais vi. Enquanto isso, o homem calmamente vindo. Calmamente, não havia uma tensão nele, era uma calma de quem aceitou luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco; era por coragem que andava em público com o seu bicho. Ivan sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação não era propriamente minha, vinha de que aquele bicho não sabia mais quem ele era, e não podia, portanto, me transmitir uma imagem nítida.

Até que o homem passou perto. Sem um sorriso, costas duras, altivamente se expondo - não, nunca foi fácil passar diante da fila humana. Fingia prescindir de admiração ou piedade; mas cada um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho.

- Que bicho é esse? perguntei-lhe, e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele, mas na pergunta o tom talvez incluísse: "por que é que você fez isso? que carência é essa que faz você inventar um cachorro? e por que não um cachorro mesmo, então? pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir esse bicho senão com uma coleira? mas você esmaga uma rosa se apertá-la com força!" Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras, sei que estou esmagando uma rosa, mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio, e só assim que muitas vezes tenho matado o que compreendo. (Se bem que, glória a Deus, sei mais silêncio que palavras.)

O homem, sem parar, respondeu curto, embora sem aspereza. E era quati mesmo. Ficamos olhando. Nem Ivan nem eu sorrimos, ninguém na fila riu - esse era o tom, essa era a intuição. Ficamos olhando.

Era um quati que se pensava cachorro. às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para cheirar coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça tem uma hora que o quati se constrange todo: "mas, santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?" Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico, olhando as estrelas: "que tenho afinal? que me falta? sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia?
" E o homem, para poder de livrá-o da pergunta, esse homem nunca lhe diria para não perdê-lo para sempre.

Ele sente amor e gratidão pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: e o quati se não percebe que o odeia porque está evidentemente confuso.

Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza? Tremo ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati inesperadamente defrontar-se com outro quati, e nele reconhecer-se, ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu...Não. Bem sei, ele teria direito, quando soubesse, de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser - adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho, tomo o partido das vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe ao homem, e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo é claro".

Em: Para não esquecer - Clarice Lispector, Rio de Janeiro, Rocco, 1999.

2 comentários:

Anônimo disse...

Simplesmente fabuloso.

Fernando disse...

Ler esse texto realmente mudou a minha vida!